Por Raimundo Mendes Alves
Não sei se é o luto universal pela partida de sua Santidade, o Papa Francisco — símbolo vivo de uma fé humanizada — ou se é o silêncio profundo dos dias pascais que me convocam a refletir com maior gravidade sobre o tempo em que vivemos.
Mas algo em mim se inquieta. E essa inquietação, que não é apenas pessoal, mas civilizatória, clama por um resgate: o resgate do humanismo como bússola de uma nova travessia.
Aos 68 anos de vida e não de idade, tendo testemunhado as intensas mutações sociais, políticas e tecnológicas das últimas décadas, atrevo-me a dizer – ainda que à custa de soar um tanto dramático – que vivemos mais transformações nos últimos 30 anos do que em séculos anteriores. Não apenas no campo das inovações e dos algoritmos, mas, sobretudo, na estrutura sensível das relações humanas.
O que assistimos é uma sociedade em vertigem: um tempo em que o diálogo cede lugar à intolerância, a divergência é confundida com hostilidade, e a convivência democrática vem sendo corroída pela lógica da tribalização digital.
A cultura do cancelamento substituiu o contraditório civilizado; os algoritmos nos aprisionaram em bolhas cognitivas; a informação, antes plural, passou a ser manipulada por conglomerados que concentram não apenas patentes e capitais, mas consciências.
Vivemos sob o domínio de poucas corporações que são detentoras dos dados e das narrativas, tornaram-se, de certo modo, as novas soberanias supranacionais. Controlam o fluxo do saber, moldam hábitos de consumo, orientam o comportamento eleitoral e reduzem a participação política a cliques, curtidas e memes. Nesse cenário, pequenas empresas — verdadeiras expressões da economia familiar e local — são tragadas pela voracidade do capital global, enquanto a cidadania se enfraquece no anonimato digital.
Mas a crise maior não é econômica. É ética. É afetiva. É espiritual.
As famílias, outrora reunidas em torno da mesa — espaço sagrado da partilha e do afeto — hoje mal se encontram. A mãe trabalha fora durante o dia, o pai à noite. E, quando os corpos enfim se cruzam no fim de semana, os espíritos estão ausentes, absortos em suas telas, em suas timelines, em suas solidões silenciosas. Vivemos juntos, mas desconectados. Próximos fisicamente, porém distantes emocional e espiritualmente. Somos, muitas vezes, prisioneiros de nossas próprias individualidades.
E é nesse contexto que me pergunto: qual a saída?
Talvez não haja outro caminho senão a retomada firme e corajosa de um humanismo integral, alicerçado nos valores universais do respeito, da empatia, da solidariedade e da dignidade da pessoa humana. Um humanismo que resgate a centralidade do ser sobre o ter; do ser com o outro, e não contra o outro.
É urgente reaprendermos a conversar sem nos agredir, a divergir sem nos hostilizar, a construir pontes e não muros. Precisamos reencontrar o caminho da honestidade no trato público, da delicadeza nas relações cotidianas, da gentileza como força política e do respeito ao próximo como fundamento da democracia.
O Papa Francisco, que agora descansa na paz do Pai, foi um dos maiores defensores dessa espiritualidade do encontro. Suas palavras, seu exemplo e sua humildade fizeram ecoar no mundo a necessidade de uma Igreja em saída, de um povo comprometido com os pobres, com o planeta, com a paz. Francisco nos recordou que fé e política não se opõem, mas se complementam quando colocadas a serviço da justiça, da fraternidade e da vida.
Sua morte nos comove, mas também nos convoca. Convoca a todos — crentes ou não — a repensar os rumos da humanidade, a revalorizar o essencial, a reconstruir os vínculos que nos tornam verdadeiramente humanos.
Porque não há progresso verdadeiro sem valores. E não há futuro digno sem humanidade.
Que esse tempo de perdas nos inspire a um novo tempo de busca — pela beleza da convivência, pela força da escuta, pela coragem do perdão e pela luz da esperança. Que Francisco — o Papa da ternura e da coragem — seja semente viva de um mundo melhor.
Natal/RN, 21 de abril de 2025
Raimundo Mendes Alves
A d v o g a d o