Por Horácio Paiva*
A realidade é a opção do provável. A consciência tem muitos caminhos, mas apenas um, de fato, nos é dado viver em nosso mundo. Os demais pertencem à definição dos universos paralelos, traçada pela magia lógica da física quântica.
A realidade
é a opção do provável –
o real é Deus.
Porém não é a filosofia agora o que nos importa, mas a poesia, com o seu aglomerado infinito de sonhos, à disposição do imaginário de cada um. Afinal,
Todo homem
traz
uma mensagem.
Todo homem
é mensageiro
dos deuses.
Quanto a mim, cumpro meu papel contemplativo, ou missão: sou um sonhador nato, isto é, sonho muito – o que não significa, necessariamente, originalidade. Desses sonhos, inúmeras vezes, nasceram ações e realidades que foram úteis não apenas a mim, mas também ao meu próximo. Apraz-me, por exemplo, haver participado intensamente, e em momentos decisivos, de lutas sociais.
A par disto, sou igualmente um sonhador individual, e, neste caso, nem sempre a contemplação leva à ação, contentando-me no campo prazeroso e desafiador das divagações espirituais, devocionais ou mesmo sensoriais. Quanto a estas últimas, e não obstante por vezes fazer residência numa fazenda, no interior do mato, o meu amor à natureza tem duas almas, levando-me a um sítio à beira-mar, acolhedor ao encontro com a poesia que, como Vênus, parece haver nascido do mar, espelho de uma beleza absoluta onde, desprendidos, nos deixamos ficar – como no encanto desses versos de Fernando Pessoa:
“Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar”.
Ou no embalo dramático desses outros, também do grande poeta, que lembram a saga dos antigos navegadores portugueses, desbravadores do Mar Oceano:
“Ó mar salgado,
Quanto desse sal
São lágrimas de Portugal.”
Ah, Vênus!… Ah, o diálogo amoroso com a amada no alvorecer da clara manhã!… Não é o mesmo que sugere o anjo Amadeus, no andante pausado e quase sacro de seu Concerto 21 para piano?
Disse-me certa vez o meu saudoso amigo Luiz Evangelista de Oliveira, cearense nascido no vale do Jaguaribe e médico dos marítimos de Macau, num tempo que jamais se perderá, preferir sítios que reunissem o sertão e o mar. Havia nele – e certamente ainda há, onde estiver – essas duas almas.
Corria o ano de 1916, no fragor da Primeira Grande Guerra, quando o poeta norte-americano Alan Seeger, com 28 anos de idade, lutava nas fileiras das tropas aliadas. Às vésperas de morrer em combate, escreveu um poema intitulado “Tenho um Encontro com a Morte” (“I Have a Rendez-vous with Death”), cujos versos profeticamente anunciavam o seu fim trágico:
“Eu tenho um encontro com a morte,
E jamais a esse encontro eu faltarei.”
O amor, a vida e a morte sempre foram o universo da grande poesia… Miguel Hernández:
“Llegó con três heridas:
La del amor,
La de la muerte,
La de la vida.”
O meu encontro com a poesia numa herdade à beira-mar, mesclado de serenidade, sonho e prazer, terá o tempo completo de um dia – mas não de precisas vinte e quatro horas -, observadas, porém, essas quatro estações: manhã, meio-dia, tarde e noite. Divirto-me a imaginar o que estaria recordando, lendo ou ouvindo…
E não se surpreendam se encontrarem a manhã repleta de música, já que não poderei esquecer o primeiro movimento da nona sinfonia de Beethoven – música absoluta, como diria Carpeaux – e o encanto da “Ode à Alegria”, com os belos, sonoros e românticos versos de Schiller, ao final.
O lugar e a hora me farão mais uma vez recordar essa estranha e diáfana Annabel Lee, em seu reino à beira-mar, e cujo amor fora invejado pelos próprios serafins, tema de memorável poema de Edgar Allan Pöe.
“Eu era criança, ela era uma criança
no reino à beira-mar,
mas nosso amor chegava, ó Annabel Lee,
o amor a ultrapassar,
amor que os próprios serafins celestes
vieram a invejar.”
O meio-dia tropical, porém, requer um poema forte, de crença de força na vida, e lembro o nosso Gonçalves Dias:
“Se a vida é combate
Que aos fracos abate,
Aos fortes, aos bravos
Só pode exaltar.”
Ainda ao meio-dia, nordestino, pleno de sol e luz, vejo e escuto a natureza do semiárido, onde o raios de sol, além dos passarinhos, cantam.
Os raios de sol gorjeiam
na límpida claridade
do meio-dia.
À tarde, na hora frágil que antecede o pôr do sol, estarei nostálgico e pensativo. Recordarei a infância e a casa de meu pai, e buscarei viver esse mundo aparentemente perdido, refugiando-me à sombra do limoeiro que encontro em Antonio Machado:
“Estou sozinho no pátio silencioso
buscando uma ilusão cândida e velha.”
“Esse aroma evocativo dos fantasmas
das fragrâncias virginais e já desfeitas.”
Mas a noite é a hora do recolhimento em Deus e na esperança – la fuente que mana y corre – e entrego-me à leitura de San Juan de la Cruz e de sua obra-prima, quiçá de toda a poesia escrita em língua espanhola, “Noche Obscura”. Ouvindo Bach, naturalmente, e acompanhando Jesus no Horto das Oliveiras, como também o faz o inspirado compositor em sua sublime Ária na Corda Sol…
“Sin outra luz y guia
sino la que en el corazón ardia.”
*Poeta, Escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA