A produtora estatal de notícias, Agência Brasil, em uma reportagem sobre um evento de parlamentares LGBTQIA+ eleitos, fez uso de linguagem não-binária, conhecida também como linguagem neutra, onde a flexibilização do gênero, na teoria, ampliaria a inclusão para todos, independente da identidade de gênero.
A linguagem utilizada levantou discussões nas redes sociais e despertou a ira de quem acredita que os termos usados façam parte de uma ideologia de gênero.


Mas, na área linguística, seria a linguagem neutra uma modernização gramatical ou um debate ideológico? Para o professor de português e mestrando em Estudos da Linguagem, Guilherme Henrique, o gênero neutro é mais uma maneira de expressão por intermédio da língua, que tenta contemplar grupos minoritários que historicamente estiveram à margem do sistema de direitos e privilégios: “Se é correto ou não usar, a gente precisa ver de qual perspectiva de linguagem estamos tratando. Minha perspectiva é entender as línguas e a linguagem como uma forma de interação entre os sujeitos. Então, usar o gênero neutro para mediar essa comunicação, é correto sim”.
Segundo ele, toda língua “viva” tem como principal característica a adaptação. Ela sempre vai se adequar às demandas sociais, aos usos, aos costumes e às práticas. “A linguagem e a língua também vão sendo configuradas para atender essas questões. É interessante pensar na língua sendo um organismo quase vivo, porque é concebida pelos sujeitos e para o uso dos sujeitos”.
Guilherme ressalta que com base em Bakhtin, as perspectivas conservadoras do uso da linguagem balizam a linguagem entre certo e errado, numa visão que nem sempre dá conta da complexidade da constituição da língua em si. Partindo dessas perspectivas ele afirma considerar o pronome neutro uma maneira de reivindicar mais inclusão, mas, não é somente a língua que tem esse papel. “Para garantir inclusão de pessoas, é necessário que se tenha políticas públicas; acesso a empregos, educação, acesso ao nível superior, aí sim é uma garantia de inclusão, mas eu entendo o uso do gênero neutro como uma forma de chamar atenção para uma reivindicação de grupos minoritários e que é uma maneira de tentar incluir”.
A professora do Departamento de Letras da UFRN, com pós-doutorado em Linguística, Cellina Muniz, destaca que essa discussão é muito complexa e não pode ser reduzida a certo ou errado: “Do ponto de vista da linguística, sabe-se que uma língua é necessariamente viva, múltipla e fluida. Por isso mesmo, ela está sempre em movimento e por meio dela se registram os embates e particularidades de uma época”.
A doutora exemplifica como essas mudanças podem ser vistas e como passam por modificações: “O surgimento do “presidenta”, totalmente legítimo, por ocasião da eleição de Dilma como primeira mulher a governar o país. Nesse sentido, as línguas são palco de visões de mundo e neutralidade ideológica é algo que definitivamente não existe”.
Para ela, o cenário em que vivemos atualmente mostra cada vez mais a luta por visibilidade e equidade de grupos que foram e são ainda historicamente discriminados, perseguidos e oprimidos e é nesse cenário que se coloca a discussão da “linguagem neutra”.
“É preciso lembrar que gênero gramatical não equivale a gênero social.
A palavra “xícara”, por exemplo, é feminina, mas isso não faz dela um ser de gênero social feminino”. Ela evidencia de que modo essa discussão pode ser levada para vários âmbitos, mas que no final das contas, o embate ainda persiste. “Quando se trata de referir-se a pessoas – há uma visão tão arraigada que merece ser desconstruída. Por exemplo: pode-se dizer que há uma representação patriarcal cristalizada na língua que faz com que o plural de ele + ela seja “eles”.
Mas será mesmo que é grafando “todes” que vamos realmente efetivar uma desconstrução?”
A professora levanta o questionamento a respeito de como os debates podem ser infindáveis sobre essa questão e de como são um universo de possibilidades: “A discussão é muito ampla e não se esgota facilmente. O importante é que haja o debate. E que todos, todas e todes sejam respeitad@s em sua dignidade humana”, finaliza Cellina Muniz.