Há coisas que a gente lê, confere a veracidade, mas não quer acreditar no que está lendo, tamanha a imbecilidade, para dizer o mínimo. Se você não sabe, procure a história do vereador Mateus Batista (União Brasil), integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), que defendeu, na Câmara Municipal de Joinville/SC, a elaboração de um projeto de lei com o objetivo de proibir a migração de nortistas e nordestinos para a “Cidade das Flores”.
Segundo esse racistazinho de meia pataca, Santa Catarina será favelizada se não barrar pessoas do Norte/Nordeste. Mas espere! Racistazinho? Tal conduta é mesmo racista? Semanticamente, afirmo que sim, e comprovo com o dicionário. Racismo, diz o Houaiss, é também o preconceito contra “indivíduos pertencentes a grupos […] considerados inferiores”, é “discriminação social”, é gesto de hostilidade contra categorias de seres humanos.
E criminalmente, como defende a corajosa vereadora Thabatta Pimenta (PSOL), de Natal/RN? Por infelicidade, não. Conforme o art. 1º da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Crime Racial), são racistas os autores de “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Acrescentam-se a homofobia e a transfobia ao rol, como delitos equiparados, por obra do Supremo Tribunal Federal (STF).
O discurso do vereador, embora indecoroso, ridículo, babaca, não é alcançado pela legislação antirracismo porque não se enquadra nos conceitos de raça, marcador social que enfoca características biológicas; de cor, criação também social que hierarquiza as pessoas pela tonalidade da pele; ou de etnia, divisão de grupos por afinidades culturais, envolvendo língua, semelhanças genéticas, estrutura comunitária, política e territorial.
Além disso, não se deve confundir procedência nacional com procedência regional. A discriminação por razões de procedência nacional é o comportamento hostil contra quem vem do exterior. Assim, quando um brasileiro – que contraditoriamente integra o “União Brasil” e o “Brasil Livre” – externa ódio por conterrâneos de outros Estados, age com índole racista no cartório da língua portuguesa, mas não perante a legislação penal.
Também não é injúria racial, crime previsto no art. 2-A da Lei nº 7.716/1989 e que consiste em ofender “a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. O motivo é simples: a injúria atinge a honra subjetiva, ou seja, o sentimento que o sujeito tem de si, diferentemente da honra objetiva, juízo que o outro faz de mim. Então, para ser injúria racial, a conduta do político sulista precisaria ter uma vítima específica.
A notícia boa é a de que tramitam na Câmara dos Deputados, apensados um ao outro, e prontos para votação em plenário, dois projetos de lei (2564/2021 e 5944/2016) relativos ao assunto. Se forem aprovados, a discriminação regional passará a ser mais uma modalidade de racismo. Aí, quem resolver imitar o edil ou se ele próprio voltar a destilar preconceito, será enquadrado como racista tanto no aspecto linguístico quanto na seara jurisdicional.
Por enquanto, nada pode ser feito? Pode! Deve! E não será a primeira vez. O Ministério Público Federal (MPF) já impetrou ações civis públicas requerendo a condenação de pessoas da laia de Mateus Batista ao pagamento de danos morais coletivos. Agiu assim, por exemplo, com Ângela Machado, diretora de Responsabilidade Social do Flamengo; e contra um piloto de avião, ambos por discursos discriminatórios contra a gente do Nordeste.
Como, entretanto, o direito não é uma ciência exata, existem opiniões divergentes em todas as questões, inclusive acerca do que acabo de escrever, interpretando a lei com objetividade e garantismo. Há integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário que ampliam o significado do termo “procedência nacional”, a fim de alcançar manifestações discriminatórias de natureza regional. Trago até exemplos de condenações penais.
O vereador Sandro Fantinel (PL), de Caxias do Sul/RS, atacou os baianos e foi condenado, em 1ª instância, a três anos de cadeia, à perda do cargo e ao pagamento de R$ 50 mil. Isso, por “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de […] procedência nacional” (art. 20 da Lei nº 7.716/1989). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por sua vez, absolveu o réu por entender impossível harmonizar fato e norma.
Em sentido oposto, um pedido de produção de provas negado pela Justiça Federal do RN e pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), por não verem crime na conduta narrada pelo MPF, acabou autorizado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O objetivo: identificar o autor das frases “E aí tudo graças aos flagelados nordestinos que vivem de bolsa esmola” e “Ebola, olha com carinho para o Nordeste”, vistas em perfil do Facebook.
Admito que a decisão do STJ não é algo absurdo, se observada à luz do art. 20-C da Lei nº 7.716/1989. Está dito ali que o juiz deve valorar, como discriminatórios, gestos contra indivíduo ou minorias que gerem “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Viu? “Procedência”, sem especificação de origem.
Parodiando Ulysses Guimarães, tenho ódio ao racismo. Ódio e nojo! Ao mesmo tempo, reitero a visão garantista de quem ama a democracia e defende o processo penal democrático, no qual os direitos fundamentais do indivíduo são respeitados. Romper tal barreira, por melhor que se mostre a intenção, traz graves riscos para a sociedade. No direito, o fim não pode justificar o meio. Fora da legalidade estrita, o meio se confunde com o crime.