Jair Bolsonaro é culpado de muitas coisas: do negacionismo durante a pandemia ao seu provável envolvimento em ações e reuniões que resultaram no 8 de janeiro de 2023, passando pela covardia em governar. Mas o Brasil que o repudia, com ódio fervoroso e sem pausa para reflexão, talvez esteja cometendo um pecado tão perigoso quanto os do próprio ex-presidente: perder o juízo.
Há um ódio legítimo contra Bolsonaro, é fato. O homem dedicou décadas a construir uma caricatura de si mesmo, com falas homofóbicas, misóginas e saudosas do porão. Na Presidência, elevou o grotesco à categoria de método. Insultou cientistas e intelectuais, debochou dos mortos da Covid, elogiou notórios torturadores, etc. Fora isso, flertou com o golpismo, adulou milicianos e desdenhou da luta pela preservação da natureza, como se ela fosse apenas um parque temático.
Dito isso, um aviso: a histeria que o combate se parece cada vez mais com aquilo que o próprio Bolsonaro fabricou, a saber, um surto coletivo que transforma o debate público em torcida organizada.
O Brasil caiu numa armadilha em que qualquer crítica à atual elite no poder é automaticamente vista como um favor prestado ao capitão que chegou ao Planalto. A racionalidade saiu de cena carregada num caixão coberto com as bandeiras do “Lula Livre” e do “Impeachment Já”.
A coisa está tão fora de eixo que temos hoje um Judiciário turbinado como nunca, decidindo o que se pode falar, pensar e publicar. E quem ousa desconfiar disso vira bolsonarista por associação. É uma lógica binária que faz inveja ao velho AI-5: ou você está conosco ou está contra a democracia.
Bolsonaro é culpado, sim, por ter sido frouxo no poder, por terceirizar decisões e por permitir que os radicais se organizassem à sua sombra. Mas sua covardia não deveria justificar a canonização de quem hoje nos governa com ares de “razão de Estado”, enquanto a economia afunda com a elegância de um piano de cauda jogado da cobertura.
Lula, Haddad e companhia operam um desastre silencioso. A economia emperra, o crédito mingua, os juros sangram o consumo e o governo age como se estivesse distribuindo riquezas num país escandinavo. O Banco Central virou vilão. A culpa nunca é da má gestão – é sempre do Bozo, como dizem os ferrenhos adversários de Bolsonaro, da guerra na Ucrânia, do El Niño, de Adam Smith, de Israel, de Donald Trump.
Enquanto isso, parte da esquerda universitária, inflada por cátedras e likes, continua tocando flauta para a serpente encantada da moral superior, ignorando o preço da carne, o aluguel, a crise fiscal. E segue explicando aos pobres por que devem agradecer por políticas públicas que só existem nos Powerpoints ministeriais.
Esse estado de coisas é tão esquizofrênico que parece escrito por Kafka em coautoria com os roteiristas do Porta dos Fundos. A crítica política virou um jogo de espelhos: quando o Brasil é criticado lá fora, o choro é de soberania. Quando o STF censura uma charge, aplaude-se a responsabilidade institucional.
Querem razão de Estado? Pois bem. O mínimo que se espera de quem a invoca é que saiba pilotar o avião. Mas o que temos é um governo sem rumo, um Congresso em fúria autofágica e um Judiciário com poderes de oráculo. O Brasil pulou do avião sem paraquedas e, ao ver o mar infestado de tubarões, começou a gritar contra a gravidade. No fim, tudo se resume à substituição da política pelo ressentimento. E se amanhã o país for sancionado até pela Otan, alguém ainda vai dizer que a culpa é de Trump.
O problema é que, neste surto coletivo, ninguém quer saber da realidade. E o paraquedas continua fechado.