Oitenta anos, eis a idade. Quatro-vintes, como dizem, com tanta precisão, os franceses: quatre-vints! Isto mesmo, como quatro idades de vinte. E fico a imaginar e a rever novamente essas quatro idades, agora minhas, inexoravelmente, pois já concluídas e guardadas na memória.
Começo agora a que torço por ser a quinta idade de vinte, mas já sem tão forte garantia… E a esperar dos franceses, esta se resume a apenas dez, para se chegar aos noventa, que chamam de quatre-vints-dix (quatro vintes e dez).
Começo assim, no entardecer, minha nova idade, mas com alegria, confirmada no aval presencial e na lembrança de tantas pessoas amadas, e no amor, cada vez maior, pela natureza.
Sou um encantado pela vida, que me seduz com seus mistérios sem fim e sobre os quais me debruço todos os dias – fonte de inspiração permanente. E se, como Sócrates, não a compreendo pela razão, pelo amor e pela revelação ela me norteia no rumo da felicidade. Sua beleza se renova e a cada dia traz novas idades ou novidades à minha alma lírica… E isto mesmo neste entardecer da idade, onde numa de suas tardes escrevi, ao pôr do sol, às margens da lagoa desta minha querida quinta, esses versos travessos:
pôr do sol
na lagoa
o tempo voa
e lá vou
feliz e à toa
Mas o entardecer também aviva lembranças dos entes queridos que se foram, que não ressurgem no horizonte das distâncias, mas ao meu lado, como em tantos registros líricos que fiz.
Certa vez, mesmo fiel à minha visão de que o tempo é ilusório, ou apenas “imagem móvel da eternidade”, como o definia Platão, também fui chamado de “poeta do tempo”. Mas penso que o primeiro a merecer esse título, e com muito mais universalidade, foi o Horácio ancestral de tantos outros Horácios, o poeta romano Quintus Horatius Flaccus, que nos ensinou, em memorável e atualíssima ode, aproveitar o momento presente: “Carpe diem, quam minimum credula póstero” (”Colha o dia, crendo o mínimo possível no amanhã”)
Quanto a mim, tendo quatro vinte anos, se deixei em branco alguns dias, nem por isso aproveitei-os menos. Convenhamos que há dias calmos, mas cálidos e apaixonantes, pois a calma é um dos assentos do silêncio e da imaginação, onde viajam o conhecimento e a poesia, que também podem ser porto iluminado e dar abrigo à revelação.
PESSACH
O leito acolhedor do mar
se anuncia…
Que bela a sua luz!
Navegar é preciso…
O silêncio é uma margem longínqua
mas nele podemos contemplar Deus.
Tive sorte. Nasci na ilha de Macau – luz entre mar e céu – num tempo de esperança. Em finais de agosto de 1945 o mundo estava pacificado, após a hecatombe provocada pela Segunda Guerra Mundial, e ressurgia para uma nova era. A paz tornara-se palco de comemorações em todos os seus quadrantes. E Macau não era exceção. Macau marítima, considerada zona de guerra durante os anos do conflito, compreendia agora a dimensão da paz e sua importância para implementação de seu destino de prosperidade. O meu irmão mais velho, Graziani, então com nove anos de idade, relata-me que nasci sob tais festejos, banda de música nas ruas, foguetões e discursos de inflamados oradores locais…
Certamente esse impulso de otimismo e reconstrução, fruto do pós-guerra, aliado à essência humanista, estoica e cristã de minha educação, fez-me acreditar na capacidade de contribuir para um mundo cada vez melhor, havendo-se formado em mim uma espécie de aliança entre dois destinos, o individual e o coletivo.
E assim cresci na luta interior e social (com o auxílio da razão, mas sob a égide do coração), esta no mesmo caminho que tantos outros idealistas haviam percorrido, e aquela na iluminação que me revelou o desapego, como caminho para a coragem, para a liberdade e para Deus.
Agora, passadas todas essas idades, ao ultrapassar a barreira de meus quatro vintes anos, vejo que a humanidade volta a enfatizar a sua irracionalidade, a percorrer o perigo bélico e parece, ela própria, projetar-se noutro entardecer, sem minaretes e muezins, sem chamamentos à oração, mas ao sangue e à guerra.
E isto faz-me lembrar o que dizia o pensador francês Edgar Morin sobre a complexidade do ser humano que, sendo racional, é também irracional.
Quantos avisos inúteis ante a vocação apocalíptica para o desastre!
Resta-nos, porém, algo maior: o sonho, com suas possibilidades ilimitadas, inclusive a de mudar esse rumo.
O sonho… algo que talvez seja tudo, como a própria vida, à espera de nosso querer, e, neste caso, acredito possamos redefinir nossa vontade, passando a priorizar a paz e o amor, sem esquecê-lo jamais, pois se não há limites para o sonho, a sua direção sempre estará à nossa espera…
(*) Horácio de Paiva Oliveira – Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.