A esquerda está de cabelo arrepiado com a ordem de Lula de proibir seus ministérios de realizar atos para lembrar os 60 anos do golpe de 1964. Grupos de direitos humanos já tinham se sentido incomodados com a declaração de Lula de que 1964 é história e que não quer remoer o passado.
O caldo entornou de vez quando o presidente mandou o ministro dos Direito Humanos, Sílvio Almeida, suspender ato programado para 1º de abril. Estava previsto um discurso do ministro, ressaltando a luta dos perseguidos pela ditadura. Inevitavelmente, seria abordada a questão dos mortos e desaparecidos dos tempos do regime militar.
Desde então tem chovido manifestos e declarações de protestos de entidades de direitos humanos e de familiares de quem foi morto durante o regime, sem que seus corpos tenham sido encontrados até hoje. Quem perdeu o pai, o marido, a mulher ou um irmão se sente justificadamente ultrajado. Familiares dizem poucas e boas de Lula: ”acovardou-se diante dos militares”. Aliados de fidelidade canina como o Grupo Prerrogativas também protestam: “silenciar é inadmissível. Contraria a história e ofende a luta de tantos e tantas em defesa da democracia”, diz nota assinada pelo coordenador do grupo, Marco Aurélio de Carvalho.
A ordem de Lula para os 60 anos do golpe passar em brancas nuvens se encaixa em sua estratégia de pacificação das Forças Armadas, adotada desde a escolha de José Múcio como ministro da Defesa. Só por esse caminho se pode concluir, com êxito, o recuo organizado dos militares aos quartéis. Lula tem adotado posições que contrariam seu braço esquerdo, como adiar indefinidamente a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos. Grupos de direitos humanos reclamam que esse foi um compromisso de campanha.
Setores do Partido dos Trabalhadores não engoliram a estratégia de apaziguamento adotada pelo ministro da Defesa, com o aval de Lula. Durante a prestigiada festa de aniversário de José Dirceu, o deputado Rui Falcão indagou, em tom de chiste, a José Múcio: ”até quando você vai passar pano para os militares?”
Mas tem sido essa estratégia que tem contribuído para manter os quarteis em calmaria, apesar de oficiais de alta patente estarem sendo investigados numa escala que nunca aconteceu na história do Brasil. É um grande avanço, sem dúvidas, mas a conjuntura ainda é de instabilidade, e a polarização extremada impõe a necessidade da prudência e de não se acirrar os ânimos. Esse é o sentido da determinação de Lula para que não haja ato de governo sobre o golpe de 1964. Isso vale para os ministérios e para os quartéis.
Ademais, tudo que Lula menos precisa é abrir nova frente de contencioso. A mais recente rodada de pesquisa revelou que a água chegou na cintura do presidente em matéria de popularidade e de aprovação do seu governo. Até por pragmatismo, Lula insinua inflexão à “direita” em questões tão caras à esquerda.
A esquerda identitária vai chiar, mas Lula quer que o Supremo Tribunal Federal pise no freio na agenda dos costumes. Para o presidente, sobra desgaste para ele os julgamentos do STF sobre temas sensíveis, como descriminalização da maconha para uso pessoal e aborto. No seu entendimento, a popularidade do governo é afetada quando a Corte envereda na agenda de costumes, pois parte da população confunde iniciativa do Judiciário com posição de governo. No seu entendimento, isso cria obstáculo para sua aproximação com os evangélicos.
Entende-se, portanto, porque a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, é tão escorregadia quanto a questão do aborto, tema constante da agenda feminista. Ela segue orientação de Lula. Daí sua declaração à Folha de S. Paulo de que “hoje discutir o aborto, só por discutir, é uma irresponsabilidade”.
De fato, a última rodada de pesquisa impactou profundamente em Lula, a ponto de deixar para lá questões tão caras ao seu braço esquerdo. Não esperem do presidente o veto ao Projeto de Lei que proíbe a saída temporária de presos, conhecida como “saidinhas”, caso a Câmara Federal confirme o projeto já aprovado pelo Senado. Esse é um tema muito sensível aos grupos dos direitos humanos, que pode ter impactos de convulsão social nos presídios. Mas o populismo em matéria de segurança tem aderência na sociedade e Lula não tem a menor intenção de bater de frente com o “clamor popular”.
Da mesma maneira não quer bater de frente com os evangélicos, razão pela qual seu ministro da Fazenda Fernando Haddad abriu pessoalmente negociação para tentar abrandar a PEC das igrejas, que amplia a isenção de impostos para as instituições religiosas.
É da natureza dos caudilhos não tomar nenhuma medida que comprometa seriamente sua popularidade. Não é diferente com Lula. Por esse motivo, ele se movimenta entre uma linha tênue entre o pragmatismo necessário e a metamorfose ambulante, como já chegou a dizer que preferia ser.
A maleabilidade de Lula em questões relevantes à esquerda causa estupefação em seus seguidores. Não é para menos. Diante da notícia desta semana de que Lula desistiu de criar o Museu da Memória e Direitos Humanos – mais uma promessa de campanha abandonada -, só resta à sua base histórica indagar: “O que é isso, companheiro?”.