Uma complexa investigação policial, com inúmeras diligências documentadas em mais de oito meses de interceptações telefônicas e provas contundentes da formação de uma verdadeira organização criminosa com sede na capital potiguar. É o que consta na denúncia feita pelo Ministério Público Federal, em 393 páginas, que aponta 54 pessoas como participantes do maior esquema de tráfico de drogas da história do Rio Grande do Norte. Crimes? Remessas de pelo menos 8 toneladas de cocaína para a Europa, Ásia e África a partir dos portos de Natal e Areia Branca, no Rio Grande do Norte, e de outros terminais brasileiros, constituindo participação em organização criminosa, associação para o tráfico de entorpecentes e tráfico internacional de entorpecentes.
Com exclusividade ao Diário do RN, o procurador da República Fernando Rocha de Andrade explicou que o MPF aguarda, já para as próximas semanas, que a Justiça Federal indefira os pedidos de diligências suplementares feitos pela defesa dos suspeitos e que a denúncia seja acatada em sua integralidade, o que viabilizará o julgamento dos envolvidos ainda neste primeiro semestre. Se isso acontecer, os 54 denunciados serão levados ao banco dos réus. Em caso de condenação, a pena pode chegar a 26 anos de prisão para cada integrante, incialmente em regime fechado.
“É, sim, o maior esquema de tráfico internacional de drogas envolvendo uma organização criminosa instalada em Natal, e cuja finalidade era enviar cocaína para a Europa”, destacou o procurador.
Operação Maritimum
Os 54 denunciados pelo MPF foram considerados diretamente envolvidos no esquema criminoso ao longo dos oito meses de investigação, o que levou à deflagração, em julho de 2022, da “Operação Maritimum”. Na ocasião, foram cumpridos 46 mandados de prisão preventiva e 90 de busca e apreensão no Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Ceará e Pará.
No curso da investigação, além das expressivas apreensões de cocaína no Porto de Natal, também foram identificadas apreensões nos portos de Barcarena/PA, Mucuripe/CE, Salvador/BA e Santos/SP, totalizando 8 toneladas de entorpecentes. No outro extremo da rota internacional da droga, apreensões também foram registradas em portos europeus, tendo os terminais marítimos de Amsterdã e Roterdã, na Holanda, como os principais destinos.
O esquema
Resumidamente, o esquema foi montado a partir da aquisição de uma residência no bairro de Ponta Negra, em Natal, e posteriormente de um outro imóvel no San Vale, também na capital potiguar, de onde o paulista João Paulo Ribeiro, o “BK”, também chamado de “Bokinha”, liderava a quadrilha. O local chegou a ser apelidado de “Mansão Mundrunga”. No dicionário, é possível achar duas definições para mundrunga. A primeira diz que significa mulher feia, de aparência ruim. A segunda, trata como feitiçaria, macumba ou bruxaria.
Um galpão, dentro de uma chácara em São José de Mipibu, na Grande Natal, também era utilizado como ponto de apoio para a quadrilha. Lá, os criminosos recebiam caminhões e carretas transportando contêiners carregados de mercadorias de exportação, como frutas e legumes, e faziam a contaminação da carga. O processo era simples: violar os contêiners e rechear as mercadorias com cocaína. Isso foi feito em limões, gengibres, mangas, melões e melancias.
Depois que a droga era camuflada em meio aos produtos, os contêiners eram novamente fechados com lacres clonados. Depois, os veículos seguiam para o Porto de Natal, de onde os contêiners embarcavam para a Europa. Detalhe: os contêiners possuíam termógrafos, que são dispositivos eletrônicos capazes de medir e gravar a temperatura das mercadorias. Para que os equipamentos não registrassem alterações na temperatura da carga, os bandidos colocavam sacos de gelo sobre os aparelhos.
Ainda no RN, após a apreensão de caminhões e carretas, a quadrilha tentou diversificar o modo de operar. A ideia era utilizar uma lancha para fazer a droga chegar até os cargueiros. A pequena embarcação deveria se aproximar de um navio para que bolsas com drogas fossem arremessadas para os tripulantes, que deveriam içá-las e escondê-las em um contêiner. Não deu certo. Antes que a lancha zarpasse pelo Rio Potengi, policiais federais prenderam três homens na praia da Redinha, próximo ao antigo ponto das balsas. O trio foi flagrado com mais de 380 quilos de cocaína.
Outra grande apreensão, somando 4,7 toneladas de cocaína, aconteceu em Areia Branca, dia 13 de julho de 2022. Lá, uma célula da quadrilha se valia da modalidade de içamento para navios graneleiros de sal, próximos da plataforma Porto-Ilha, para embarque da droga. As investigações revelaram que a base de operação do grupo em Areia Branca também seria responsável por recepcionar a cocaína vinda pelo Oceano Atlântico, oriunda dos países produtores da droga.
Ainda de acordo com denúncia, as investigações comprovaram que as atividades da organização criminosa não se restringiram apenas a remessas de drogas pelos portos de Natal e Areia Branca.
Ao mesmo tempo em que foram realizadas as apreensões no RN, a quadrilha também operou nos estados do Pará (onde drogas era enxertadas em cargas de madeira), Ceará, Salvador e São Paulo, com interceptações de cargas nos países europeus de destino, como Bélgica, França e Holanda.
Rota internacional
Após as primeiras apreensões de drogas no Porto de Natal aconteceram em 2019. Na ocasião, a Polícia Federal confirmou que a capital potiguar estava na rota do tráfico internacional de drogas.
À época, inclusive, a PF confirmou que já sabia da existência do transporte de drogas pelo ar – caso em que o entorpecente é levado na bagagem ou preso ao corpo de passageiros de aviões. O trajeto marítimo, no entanto, foi considerado novidade, de acordo com Delegacia Regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado da PF no RN.
Duas grandes apreensões foram feitas em fevereiro de 2019, as primeiras da história do Porto de Natal, aberto em 1932. Nunca uma operação policial havia descoberto drogas no terminal.
Ainda segundo a Polícia Federal, o tráfico marítimo entre Natal e a Europa ocorria sempre de forma semelhante. Primeiro, a cocaína era embalada em tabletes. Depois, tudo é escondido em meio a carregamentos de frutas — que são exportadas dentro de contêineres — que por sua vez atravessam o Oceano Atlântico em navios cargueiros.
Além de desembarcarem em Amsterdã ou Roterdã, muitas vezes os contêineres também eram descarregados no Porto de Antuérpia, na Bélgica. Neste último, em 2018, a polícia local chegou a apreender 50 toneladas de drogas. Ainda não se sabe se esta droga em particular partiu da capital potiguar.
DNA da droga
Ainda de acordo com a Polícia Federal no RN, pelo DNA da coca foi possível descobrir que a droga apreendida no Porto de Natal foi produzida na Colômbia, Peru e Bolívia.
Traficantes internacionais
Os traficantes que atuam na remessa de cocaína para a Europa não pertencem a facções criminosas que dominam o comércio de entorpecentes dentro do país. As investigações, segundo o procurador Fernando Rocha, não apresentam indícios, até então, da participação de integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) ou do Comando Vermelho (CV), por exemplo.
O procurador da República reforça que os criminosos em questão são traficantes internacionais. “O objetivo é fazer um negócio cada vez mais lucrativo”, concluiu.