A soltura de Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 2019, não foi um evento meramente jurídico, mas um golpe de martelo mais sonoro do Supremo Tribunal Federal (STF) em uma década de turbulência nacional. O ato de liberação, determinado pelo juiz de execução penal em Curitiba, foi a consequência burocrática e inevitável da reviravolta de 6 a 5 na jurisprudência da Corte Máxima sobre a prisão após a condenação em segunda instância. Neste ato, o STF não apenas reverteu um entendimento que ele próprio havia firmado em 2016, mas exerceu, de forma crua e incontestável, seu papel de Poder Moderador da República.
O conceito de Poder Moderador remonta ao Império, quando a Constituição de 1824 pôs o Imperador acima dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, atuando como árbitro supremo, capaz de intervir para manter o equilíbrio e a estabilidade institucional. Na República Federativa de 1988, embora essa função não esteja formalmente atribuída a nenhum poder, a jurisdição constitucional concentrada e a posição de última instância do STF o capacitaram a assumir essa roupagem, especialmente em momentos de grave crise. Quando o Executivo está sob pressão de investigações, o Legislativo é paralisado por impasses éticos e o clamor social exige uma resposta firme à corrupção (como no auge da Lava Jato), o STF é invocado, ou por vezes, auto invoca-se, para ditar o compasso e o limite da atuação dos demais. A lógica é que, se há um impasse constitucional que trava a máquina do Estado ou ameaça direitos fundamentais, cabe à Corte intervir para dar a palavra final e, desta forma, restaurar a ordem.
A decisão sobre as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54 que exigiam o trânsito em julgado para o início da pena foi o exercício máximo desse poder. Ela não discutiu o mérito da condenação de Lula, mas a própria regra do jogo. O placar apertado de 6 a 5, com a balança virando para a reafirmação da literalidade da presunção de inocência, demonstrou a extrema volatilidade da norma constitucional sob a toga e o peso que cada ministro detém na determinação dos destinos políticos e sociais da nação.
A libertação de Lula (e de milhares de outros presos) foi o resultado prático de uma escolha institucional de retomar a fidelidade ao texto constitucional, mesmo que isso implicasse um custo político imenso e a desmoralização de parte da Operação Lava Jato, que se sustentava em grande medida naquela jurisprudência flexível, deixando nítida a complexidade da trama, afinal o caso Lula se entrelaça com o desenho institucional brasileiro, no qual o STF opera como um poder moderador e, ao mesmo tempo, como última instância de garantias e liberdades.
A ironia é que a Corte, ao exercer seu papel de protetora das garantias (a liberdade via presunção de inocência), é frequentemente acusada de agir politicamente. No fundo, a soltura foi o reflexo de um Judiciário que, tendo se excedido no ativismo ao permitir a prisão em segunda instância, recuou para os limites da lei, mas o fez com a pompa e a gravidade de quem decide o futuro da nação ao mover uma única peça no tabuleiro do xadrez institucional. O timing e o resultado de tal intervenção, no entanto, tornaram a decisão um capítulo indelével e sardônico na história da justiça brasileira.
