O ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski é daqueles personagens que carregam o peso da toga mesmo depois de pendurá-la.
Depois de longo período no Supremo Tribunal Federal (STF), chegou ao Executivo com a missão (ou ilusão) de organizar o caos da segurança pública., trazendo um estilo clássico do alto clero jurídico brasileiro. Fala pausadamente, cita tratados internacionais e acredita que a razão jurídica pode domar o instinto humano. Recentemente, em audiência na Câmara dos Deputados, revelou o que parece ser sua nova cruzada moral: acabar com o glamour do crime. Disse, com firmeza, que não nomeia facções criminosas porque isso as transforma em marcas de prestígio.
Para ele, dar nome a bandido é o primeiro passo para torná-lo herói de bairro. Chamá-los de “pés de chinelo” seria, portanto, um antídoto simbólico. A lógica é simples: se o Estado e a imprensa tratam criminosos como organizações, acabam conferindo status a quem deveria inspirar vergonha.
A tese soa sensata, talvez até filosófica. Platão alertava, n’A República, que as palavras moldam a alma. Nomear é dar existência. Mas, no Brasil, o crime organizado não precisa de nome para ser sedutor. Ele oferece o que a sociedade nega: dinheiro rápido, poder imediato e o tipo de reconhecimento que não exige diploma. Não há glamour maior para o jovem sem horizonte do que a ilusão de respeito armado. O ministro, com boa intenção, tenta desmontar um símbolo. Mas símbolos, sozinhos, raramente recuam diante da realidade.
Lewandowski, no entanto, conhece o outro lado do balcão. Foi no seu tempo de presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, em 2015, que o país assistiu à criação da chamada audiência de custódia, uma das reformas mais debatidas do sistema penal recente. Inspirada em tratados internacionais de direitos humanos, a medida determina que todo preso em flagrante seja apresentado a um juiz em até 24 horas. O objetivo declarado: evitar prisões ilegais, detectar maus-tratos e racionalizar o sistema prisional. Em teoria, uma vitória civilizatória. Na prática, uma heresia para os que estão na ponta da linha, a saber, o policial, o promotor, o cidadão que é assaltado pela terceira ou quarta (ou quinta…) vez no mesmo mês. Nasceu, assim, a crítica que ecoa até hoje: a audiência de custódia virou sinônimo de soltura serial. O preso entra algemado e sai pela porta da frente antes que o boletim de ocorrência seque. Os defensores reagem com argumentos técnicos: a maioria dos flagrantes, dizem, envolve crimes menores, furtos, posse de pequenas quantidades de drogas. A lei prevê, nesses casos, alternativas à prisão. Soltar não é absolver; é aplicar medidas cautelares, como tornozeleiras, comparecimento periódico em juízo, proibição de frequentar certos lugares. Tudo correto, do ponto de vista jurídico. Mas o problema da justiça brasileira nunca foi falta de lei, mas excesso de crença no papel e ausência de consequência no mundo real.
Enquanto a teoria tenta equilibrar liberdade e segurança, o Brasil continua contabilizando cadáveres e reincidências. É um país no qual o Estado parece ter medo de exercer autoridade e no qual o criminoso, mesmo pé-de-chinelo, entende muito bem o jogo: o risco de ser preso é menor do que o de perder o sinal do celular.
Lewandowski tenta conciliar o filósofo e o policial dentro de si, o que é, vamos e venhamos uma tarefa ingrata. De um lado, prega a desglamourização do crime, combatendo a mística dos bandidos de fuzil. D’outro, é o pai jurídico de um mecanismo que, na prática, é acusado de aliviar o peso da punição. Entre a retórica e o concreto, o Brasil segue no seu paradoxo, um país de leis abundantes e de ordem ausente. É debate largo sobre assunto complexo. A questão é mais profunda, e não é somente se a audiência de custódia deve ou não existir, mas até que ponto o sistema judicial brasileiro, movido pela crença humanitária, não acabou se tornando cúmplice involuntário da impunidade que corrói o país?
Talvez Lewandowski tenha razão ao evitar dar nome a facções. Mas seria bom lembrar que, como ensinou Maquiavel, o poder não se sustenta com boas intenções, mas com resultados. E enquanto o crime continuar rendendo mais dinheiro e prestígio que a ordem, nenhum silêncio ministerial será suficiente para desglamourizar o que, no Brasil, já virou profissão de fé.
