Por Ana Beatryz Ana Fernandes
O Candomblé, uma religião de matriz africana, possui raízes profundas na cultura brasileira, especialmente nas comunidades afrodescendentes. Com seus rituais, danças, cantos e cultos aos orixás, a prática religiosa é um elo com as tradições que remontam às antigas terras africanas, particularmente da região do Golfo do Benim e áreas ao redor. Durante séculos, seus adeptos enfrentaram perseguições e, desde a escravidão até os tempos atuais, continuam a sofrer com o preconceito e a intolerância religiosa, prática que, apesar de ser crime, ainda é vivida por muitos brasileiros em diferentes esferas da sociedade. Recentemente, o caso de Pietra Müller, estudante do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), expôs de maneira clara e dolorosa o quanto a intolerância contra as religiões afro-brasileiras permanece presente na sociedade.
Em 22 de janeiro de 2025, Priscila Müller, consultora de marketing e mãe de Pietra, usou suas redes sociais para denunciar o episódio de intolerância religiosa sofrido pela filha, durante uma aula de Educação Física no IFRN, Campus Central de Natal. Pietra, 17 anos, praticante de Candomblé, foi impedida de ser dispensada da atividade física, mesmo estando em período de preceito pós-obrigação religiosa, um rito que exige o descanso físico e impõe restrições a quem o cumpre.
De acordo com o boletim de ocorrência registrado pela estudante, o professor insistiu que “religião não é motivo para deixar de participar da aula integralmente”. O episódio gerou uma grande angústia em Pietra, que ainda foi questionada sobre sua religião diante da turma, o que causou constrangimento: “Depois de tudo que passei, os sentimentos são complicados. A dor e o constrangimento são inevitáveis, mas também nasce uma força dessa experiência. Foi muito difícil passar por essa situação, especialmente em um ambiente escolar onde todos deveriam se sentir seguros e respeitados”.
Após a aula, em uma conversa privada, o professor afirmou que não sabia que pessoas brancas podiam praticar o Candomblé e questionou o tempo necessário para que Pietra voltasse a “ficar normal”. A jovem conta que se sentiu triste e desrespeitada, mas decidiu usar sua voz para combater a intolerância e destaca a importância de não se calar diante do preconceito e de lutar pelos direitos dos que sofrem discriminação. “Essa experiência reforçou minha determinação em lutar pelos direitos de todos que, assim como eu, sofrem com a intolerância. Entendi que não podia ficar calada, não só por mim, mas por todos que já passaram por isso e voltaram calados para casa e por aqueles que ainda hão de passar. Essa luta é coletiva. Minha grande família de santo tem sido uma fonte gigante de força e apoio, sempre pronta para ir à luta de mãos dadas comigo. Isso enche meu coração de coragem”, afirmou Pietra.
Em entrevista ao Diário do RN, Priscila Müller que teve contato com o candomblé há pelo menos 16 anos, explicou que a intolerância religiosa é uma realidade que ela e sua filha já enfrentaram em outras situações. Um dos episódios ocorreu há três anos, quando elas foram abordadas, em um supermercado, por evangélicos que questionaram a religião delas por estarem usando roupas típicas do candomblé.
“Um grupo de evangélicos cantou louvores e um pastor pregou para mim, minha filha e uma amiga, pois estávamos com pano de cabeça, contas no pescoço e saias brancas fazendo compras e caminho de uma função no nosso terreiro. O gerente se aproximou para apressar nossas compras e os seguranças tiveram medo de se aproximar. Um evangélico ainda seguiu a gente até o carro oferecendo o caminho da salvação e o salvador. Minha filha e minha amiga ficaram revoltadas e foi uma situação bem difícil de lidar”, relata Priscila.
História marcada pela perseguição e pela invisibilização
A intolerância religiosa é uma realidade crescente no Brasil, e o Rio Grande do Norte tem se mostrado um reflexo dessa problemática. Entre os anos de 2020 e 2023, o número de registros de intolerância religiosa no estado aumentou 200%, segundo dados da Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais (COINE). O caso de Pietra é apenas um exemplo de uma tendência alarmante que afeta, principalmente, praticantes de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.
Para Bàbà Melqui, sacerdote de Jurema há 55 anos e sacerdote de Candomblé há 28 anos, Babalorixá da Casa Ilé Àse Dajo Obá Ogodó, Casa de Cultura de Matriz Africana, o candomblé no Rio Grande do Norte ainda é visto como uma prática nova, especialmente em Natal, que é uma terra de tradição umbandista e de jurema. Em entrevista ao Diário do RN, ele relatou que a história das religiões afro-brasileiras no estado foi marcada pela perseguição policial e pela invisibilização dessas tradições.
“Aqui é terra de Jurema, é terra de Umbanda. Então, o candomblé aqui para nós ainda é muito novo. Eu ainda alcancei quando a gente ia tirar uma licença que ainda não era o meu caso, eu iniciei na religião principalmente na Jurema, em 1970, mas eu vi a minha madrinha. Ela tirou uma licença da federação, mas precisava tirar um documento, um alvará, era um alvará de funcionamento na delegacia de polícia. Isso lá no interior, mas aqui [Natal] também não era diferente. E essa história toda é montada em cima de perseguição policial, porque o Estado muito religioso, sempre procurou invisibilizar essas tradições, esses segmentos religiosos afro-ameríndios”, relata Bàbà Melqui.
Melqui observa que o desconhecimento da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas, ainda é um problema em instituições educacionais, e acabam gerando casos como o de Pietra que demonstram desconhecimento sobre a diversidade religiosa e os direitos dos praticantes de religiões de matriz africana. “Eu fiquei assim muito decepcionado, triste mesmo com o que houve com a Pietra lá no IFRN, agora eu imagino se ela fosse uma negra de periferia, como teria sido? Eu não quero nem imaginar. Nós vemos que foi um ato intolerante, literalmente”, relata o babalorixá.
“Deus é inclusivo. O nosso compromisso de estarmos à frente das nossas casas dessa geração é fazer com que essa tradição seja implantada realmente, mas com um olhar para o sagrado para que os próximos eles possam levar essa forma de lidar com o outro, com respeito a outra religião. Existe um provérbio em Yorubá que foi o primeiro que eu aprendi:
‘Òwe provérbio Iorubá
Ní Ìbẹ̀rù Ọlọ́run,
Ní Ìbẹ̀rù Ẹnìa’.
‘Só há respeito para Deus, quando há respeito pelas pessoas’, explica Bàbà Melqui.
A violência da intolerância religiosa no Brasil
Os números de intolerância religiosa no Brasil são preocupantes. O Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023, que teve 2.128 casos, segundo dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100.
A religião que registrou o maior número de violações foi a umbanda, seguida pelo candomblé. O número de violações de ambas as crenças mais que dobrou de 2023 para 2024, com o candomblé registrando 214 violações no último ano e 58 violações no ano anterior. A umbanda teve 84 casos, em 2023, e 234 ocorridos, em 2024.
O Disque 100 é um número de telefone do governo que funciona 24 horas por dia para receber denúncias de violações de direitos humanos.