Em entrevista ao Diário do RN, o Arcebispo Metropolitano de Natal, Dom João Santos Cardoso, compartilhou sua profunda comoção diante da morte do Papa Francisco, ocorrida nesta segunda-feira (21, e prestou uma comovente homenagem ao pontífice, destacando sua última aparição pública como um verdadeiro testamento de fé e esperança. Confira a entrevista na íntegra:
1. Como recebeu a notícia da morte do Papa Francisco?
Dom João: Recebemos com profunda tristeza e comoção a notícia do falecimento do Papa Francisco, ocorrido na manhã desta segunda-feira, 21 de abril de 2025, na Casa Santa Marta, no Vaticano. Como toda a Igreja espalhada pelo mundo, unimo-nos em oração e ação de graças pela sua vida, pelo seu ministério e pelo imenso legado que deixa à humanidade. Sua última aparição pública, ontem, no Domingo da Ressurreição, foi um verdadeiro testamento espiritual. Debilitado, mas com o coração inflamado de fé, apareceu à sacada da Basílica de São Pedro para dar sua última bênção “Urbi et Orbi”, oferecendo ao mundo um derradeiro gesto de ternura e esperança pascal. Sua voz, que parecia vencida pela fragilidade, tornou-se um brado de fé: “Irmãos e irmãs, Feliz Páscoa!”. Na tarde de ontem, às 16h30, celebramos, na Catedral Metropolitana de Natal, a Missa em sufrágio de sua alma. Reuniram-se o clero, religiosos, religiosas e fiéis leigos para elevar preces pela sua páscoa definitiva e para celebrar com gratidão o seu ministério profético.
2. Quais foram, em sua visão, os principais marcos do pontificado do Papa Francisco?
Dom João: O Papa Francisco foi uma surpreendente e providencial dádiva do Espírito Santo para a Igreja e para o mundo em nosso tempo. Seu pontificado provocou uma verdadeira primavera eclesial, marcada por gestos de proximidade, por palavras de esperança e por uma coragem evangélica que renovou a face da Igreja. Destaco alguns marcos fundamentais:
– Evangelii Gaudium, sua primeira exortação apostólica, em que ele apresenta alguns pontos do programa de seu pontificado. Destaco a renovação missionária da Igreja e conversão pastoral, no qual nos convocou a sermos uma Igreja “em saída”, missionária, alegre, samaritana, acolhedora e servidora dos pobres.
– Laudato Si’ e Laudate Deum, documentos proféticos que colocaram a questão ecológica no centro da agenda mundial, propondo uma autêntica conversão ecológica, fundamentada na fé, na ciência e na ética.
– Sua firme luta contra os abusos e sua determinação em proteger os mais vulneráveis, com reformas significativas na legislação eclesiástica e nos mecanismos de responsabilização.
– O estilo pastoral, simples, próximo, misericordioso. Francisco reconectou o papado ao povo de Deus, caminhando com o “cheiro das ovelhas”, como ele mesmo dizia.
Seus encontros com refugiados, encarcerados, doentes e excluídos tornaram visível a misericórdia do Cristo Bom Pastor.
3. Como a Igreja pode continuar a missão do Papa Francisco, especialmente em temas como justiça social e cuidado com o meio ambiente?
Dom João: O Papa Francisco foi, sem dúvida, um dos grandes profetas do nosso tempo. Como um novo Noé, especialmente na Exortação Apostólica Laudate Deum, alertou o mundo para a gravidade da crise climática, semelhante a um verdadeiro dilúvio ambiental e moral a ameaçar a humanidade. Diante desse cenário, nos sentimos interpelados a construir juntos a arca da fraternidade, do cuidado com a criação, da justiça social e da paz duradoura. Sua missão permanece atual. Cabe a nós, pastores e fiéis, acolher sua palavra e encarná-la nas realidades concretas de nosso tempo. A Igreja deve seguir fiel ao compromisso com a cultura do encontro e do diálogo, o combate à indiferença e à exclusão, à escuta do grito da terra e do grito dos pobres. A sua voz continuará a ecoar por muito tempo, lembrando-nos que o Evangelho não é uma ideia abstrata, mas uma presença viva, que nos interpela especialmente no rosto dos sofredores, dos excluídos e dos esquecidos da sociedade.
4. Qual a importância do Papa Francisco para a América Latina?
Dom João: Francisco levou consigo a alma da América Latina para o centro da Igreja universal. Ele mesmo reconheceu que sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium foi profundamente inspirada no Documento de Aparecida, fruto da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Aparecida/SP, da qual participou ativamente e foi o relator. Seu pensamento e espiritualidade estão profundamente enraizados na tradição latino-americana: uma Igreja próxima, inserida no meio do povo, marcada pela opção pelos pobres, sensível à realidade dos povos indígenas, aos desafios sociais, à religiosidade simples do povo. Foi o primeiro Papa latino-americano — e isso não foi apenas um dado biográfico, mas uma marca espiritual e pastoral de todo o seu pontificado.
5. Teve alguma interação pessoal com o Papa Francisco? Poderia partilhar uma lembrança marcante?
Dom João: Sim. A ocasião mais marcante foi durante a visita ad limina dos bispos do Regional Nordeste 3 da CNBB, em 2022, quando eu era Presidente do Regional. Coube-me dirigir a saudação oficial ao Santo Padre e coordenar o diálogo com os bispos. Naquele encontro, pudemos partilhar com ele nossas alegrias e desafios. O Papa escutou com atenção nossas preocupações sobre os impactos da pandemia, a evangelização num mundo atual, especialmente a cultura digital, o papel das mulheres na Igreja, os desafios ambientais — especialmente nos biomas do Cerrado e da Caatinga — e o avanço de espiritualidades desconectadas do magistério da Igreja. Em sua resposta, Francisco destacou a importância da sinodalidade, do testemunho pastoral dos bispos e da continuidade das propostas do Documento de Aparecida, especialmente seu apelo missionário. Foi um momento de profunda comunhão e estímulo à missão.
6. Quais desafios o novo Papa enfrentará, considerando o legado de Francisco?
Dom João: O sucessor de Francisco herdará não apenas uma cátedra, mas uma herança profética e profundamente reformadora. Entre os grandes desafios que se impõem ao novo Pontífice, destaco:
– Manter o diálogo com o mundo contemporâneo, promovendo pontes e não muros, num tempo marcado por polarizações, exclusões e individualismos crescentes.
– Prosseguir com a reforma da Cúria Romana. A Constituição Praedicate Evangelium, promulgada em 2022, abriu caminho para uma gestão mais colegial, descentralizada e com maior inclusão de leigos e mulheres em cargos de liderança.
– Prosseguir com renovação da Igreja, em chave missionária e sinodal. Sustentar e aprofundar a sinodalidade como estilo de ser Igreja, valorizando o processo de escuta, discernimento comunitário e corresponsabilidade pastoral, que marcou o Sínodo sobre a Sinodalidade entre 2021 e 2024. Trata-se de continuar esse processo de conversão eclesial em que todos, do mais simples fiel ao Papa, são chamados a “caminhar juntos”, em comunhão e unidade.
– Dar continuidade ao compromisso com o cuidado da casa comum, assumido de modo profético nas encíclicas Laudato Si’ e Laudate Deum, convocando a Igreja e a humanidade à conversão ecológica integral diante da crise climática global.
– Aprofundar a cultura do cuidado, do encontro, da acolhida e da misericórdia, especialmente em relação aos pobres, migrantes, doentes, vítimas de abusos e pessoas em situações de vulnerabilidade e exclusão. O novo Papa precisará manter firme o compromisso com a tolerância zero em relação aos abusos dentro da Igreja, como estabelecido no decreto Vos estis lux mundi.
– Enfrentar os desafios da cultura digital e das novas espiritualidades da comunhão eclesial, especialmente nas redes sociais e meios alternativos.
– Conservar e atualizar a opção preferencial pelos pobres e a simplicidade evangélica do ministério petrino. Francisco resgatou o sentido pastoral e de “servo dos servos de Deus” do papado, recusando privilégios e fazendo da figura do Papa uma presença próxima, acessível e fraterna, um verdadeiro “pastor com cheiro de ovelha”.
– Conduzir com sabedoria a missão evangelizadora da Igreja em um mundo plural, multicultural e desigual, assegurando a fidelidade ao Evangelho e a abertura ao diálogo com as diversas realidades humanas.
Francisco mostrou com coragem e ternura o caminho: o da escuta, da proximidade, da reforma com espírito evangélico. Agora, cabe ao novo Sucessor de Pedro levar adiante esse legado, sendo ao mesmo tempo guardião da fé e profeta da esperança. A nós, pastores e fiéis, cabe o compromisso de continuar essa caminhada, com alegria e fidelidade ao Espírito Santo que guia a Igreja pelos caminhos da história.