A reforma administrativa é, em tese, o bisturi que prometia cortar as gorduras do Estado. Prometia — porque, no Brasil, toda cirurgia começa com anestesia moral e termina com os mesmos corpos vivos de sempre. Lá estão os intocáveis, reluzentes em suas togas e ternos caros, abanando-se com habeas corpus enquanto o povo paga a conta da luz.
A proposta, dizem, é nobre: fim dos 60 dias de férias, dos penduricalhos e da liberdade para criar “auxílios”; limitação dos supersalários; fim da aposentadoria compulsória como punição, substituída pela demissão.
Tudo muito bonito no papel – como toda tragédia começa, aliás. Mas eis que surge o ministro Edson Fachin, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), numa cena digna de um folhetim de moral reversa, sobe ao púlpito de um evento da Associação dos Magistrados Brasileiros e sentencia – não uma decisão, mas uma ameaça. “Ninguém pense que fará reforma por cima do Judiciário”, num de profeta ofendido, desses que anunciam desgraças ao menor toque em seus privilégios. Sim, é isso mesmo, o presidente do STF, o guardião da Constituição, foi participar de uma reunião de classe para advertir o Congresso Nacional, e o fez com a solenidade de quem está salvando a República, quando, na verdade, estava apenas defendendo o contracheque, porque, sejamos francos, toda reforma administrativa, quando aparece, sangra o Executivo e poupa o Judiciário e o Legislativo. É a coreografia habitual do poder. O governo corta o salário do servidor do protocolo e do porteiro da repartição e, enquanto isso, lá no topo, as excelências mantêm suas férias de marajá, seus auxílios-moradia, seus direitos adquiridos que nem o apocalipse revoga.
O Congresso finge cortar na própria carne, mas só apara as unhas, a anunciando a medida como sacrifício. E o Judiciário, ah, o Judiciário… esse se defende com o argumento da “independência”.
Traduzindo: mexer em nossos privilégios é atentar contra a democracia. Eis a tragédia em forma de farsa.
Quando o ministro Fachin fala em “reforma genuinamente republicana”, o país devia segurar o bolso. Porque, na prática, isso significa que o cidadão comum vai continuar sendo o único republicano de verdade, aquele que paga a conta de todos os outros. Os privilégios se multiplicam como gremlins depois da meia-noite: auxílio-livro, auxílio-creche, auxílio-alimentação, auxílio-paletó, auxílio-toga, auxílio-qualquer-coisa. E quando alguém ousa sugerir o fim da farra, levantam-se os anjos da legalidade para dizer: “A Constituição não permite!”.
Há nisso uma comédia trágica, pois o país se arrasta em reformas que nada reformam, com personagens que falam em moralidade enquanto enchem o tanque de privilégios. Fachin, nesse enredo, é o guardião do templo que teme a profanação — só que o templo é o contracheque, e o sacrifício, o povo. Alguém, leviano, poderia pensar que ele está apenas defendendo os privilégios da elite do funcionalismo público. Mas o leviano, no Brasil, é o que diz a verdade. No fim, a reforma administrativa brasileira será como todas as outras: o garçom troca a toalha da mesa, mas os comensais continuam os mesmos. O Executivo sangra, o Legislativo se disfarça de moralista e o Judiciário limpa os lábios com guardanapo de seda.
E o povo – esse eterno figurante – aplaude, como quem agradece por ainda poder pagar a conta do banquete.