Por Renata Carvalho
Num mundo onde as crianças são constantemente expostas a diversidades socioeconômicas, a necessidade de um diálogo aberto sobre valores e a realidade financeira familiar emerge como uma peça fundamental na formação desses jovens. O compromisso com esse tipo de conversa recai não apenas sobre os pais, mas também sobre outros adultos presentes na vida da criança, como avós, professores e vizinhos, como explica a psicóloga Débora Vale.
“A maneira como abordamos as crianças enquanto adultos cuidadores é crucial, pois elas começam a perceber diferenças financeiras entre si. Crianças hiperconscientes podem sentir isso de maneira tangível, como ao notar que um coleguinha possui uma mochila de marca cara. Aqui, é importante focar nos aspectos pertinentes ao ‘ser’ e não apenas ao ‘ter’ da criança”, ressalta a psicóloga.
As comparações acontecem em diferentes contextos, sendo a escola um dos principais ambientes e que merece atenção especial para que coisas simples não sejam o estopim para situações mais graves e até casos de bullyng.
A publicitária Fernanda Milão (nome fictício) conta que é um desafio montar o kit escolar da filha Maria, de 8 anos, porque o sentimento sempre é o de querer atender as expectativas dos filhos. Na casa dela, cada item é negociado para se adequar aos rendimentos da família. “As diferenças são gritantes. Um apontador pode custar de R$ 3,00 até quase R$ 20,00, dependendo do modelo e da marca. O mesmo acontece com outros itens como lápis, canetas… aí, chega na parte das coleções de canetinhas e lápis de cor e a até eu fico encantada com as possibilidades. Mas a gente se segura, conversa e chega num meio termo para conseguir fechar a conta”. E ela ainda vai além: “Isso falando de itens simples, as miudezas. E quando vamos para mochila e lancheira? Tem muita opção, sim, mas a marca que todas as meninas querem é uma só. E está na faixa de R$ 500,00. Primeiro conversei com Maria que não seria possível e ela foi bastante madura. Mas ainda pesquisei bastante e consegui negociar de uma forma que coube no meu bolso. O sonho da mochila, que já era meu também, foi realizado”
Débora sugere uma abordagem gradual e contextualizada, levando em consideração a faixa etária da criança. Para aquelas entre 7 e 10 anos, por exemplo, ela propõe discutir o propósito da escola e o significado por trás de objetos caros, como mochilas de marca. Destacar o valor do aprendizado e cuidado proporcionado, em contraposição ao simples ter, ajuda a criança a compreender o contexto mais amplo.
“É através dessa linguagem e da exploração dos ‘para quê’ das coisas que a criança começa a internalizar uma perspectiva mais profunda sobre a escola, os objetos e a necessidade de pertencimento. Mesmo que ela sinta um impacto inicial, é crucial transmitir que a mochila, ou qualquer outro objeto, não define sua felicidade”, destaca Débora Vale.
A enfermeira Lívia Moreira é mãe de Caíque (nomes fictícios), um menino de 11 anos. Um dia ele chegou da escola contando do estojo incrível de um coleguinha: “Fomos até a loja da marca citada em um shopping da capital e eu quase caí para trás. Era só um estojo. Um estojo bacana, ok, mas só um estojo e custava R$ 450,00. Precisei explicar pro Caíque que o que eu ganho como enfermeira e o pai como professor, nos permite uma vida confortável, mas com limitações. Uma realidade bem diferente do coleguinha que é filho de um casal de juízes”.
A psicóloga também ressalta a importância de introduzir esse diálogo de maneira contínua no cotidiano, evitando comparações diretas entre crianças. Desta forma, a criança compreende que o mundo é um só, mas as formas de viver e as realidades financeiras variam. Abordar o tema quando a criança expressa desejos específicos permite uma compreensão mais profunda das necessidades emocionais subjacentes a essas demandas.
“Quando a criança pede ajuda ou expressa frustração, é um momento crucial para introduzir essa conversa. Muitas vezes, a frustração dos pais em não poder proporcionar um objeto desejado está mais ligada a eles do que à própria criança. Entender como a criança pede ajuda faz toda a diferença na abordagem, tornando o diálogo mais sensível e eficaz”, destaca Débora Vale.
Ao estabelecer esse diálogo constante, as famílias desempenham um papel vital no desenvolvimento de crianças mais conscientes, centradas no “ser” e menos propensas a serem influenciadas pelo consumismo infantil desenfreado. Essa abordagem busca cultivar valores duradouros e promover uma compreensão mais profunda sobre o verdadeiro significado da felicidade, além das superficialidades do ter.