A comunicação pela internet alargou fronteiras, mas também criou novas barreiras a serem enfrentadas. Os casos de discursos de ódio, intolerância, bullying e assédio só crescem, e suas consequencias se tornam cada vez mais assustadoras, afetando diretamente a saúde mental dos envolvidos. Para mostrar a cara nas redes sociais ou acessar certos espaços, é preciso conhecer bem o território online e também se autoconhecer. No momento em que a campanha Janeiro Branco, em prol da saúde mental, está no ar, a discussão se mostra ainda mais necessária e conectada ao contexto.
Mais de 74 mil denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio pela internet foram encaminhadas, em 2022, para a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet, organização de defesa dos direitos humanos em ambiente virtual. Isto representou um aumento de 67,7% em relação a 2021, e provavelmente não para de crescer. É o cenário que torna propício os ataques online, com eventuais desfechos trágicos em alguns casos.
Quando o ambiente virtual se torna uma arena de brigas e ataques, um dos lados sempre será mais afetado. É algo que pode agir diretamente sobre a autoestima e a autoimagem do indivíduo, afirma a psicóloga Taciana Chiquetti. “As brigas despertam emoções desconfortáveis como a raiva e a tristeza. E na medida em que temos um conflito, também revivemos conflitos inconscientes, e isso afeta principalmente a nossa sensação de pertencimento, nos sentimos excluídos daquilo”, diz.
No momento em que o “outro” é excluído – por raça, orientação sexual, gênero, classe ou forma física – reforça nele a sensação de não pertencimento. “E isso é muito doloroso, porque toca nas nossas feridas originais de desamparo, nas nossas feridas mais antigas de abandono e exclusão. Estamos acessando dores de nossos antepassados, da sociedade passada”, explica. Taciana ressalta que são dores de um inconsciente coletivo que também são acessadas.
Segundo a psicóloga, a razão de o “diferente” ainda incomodar algumas pessoas, tem relação com narcisismo e falta de maturidade. “Todos nascemos com uma estrutura narcísica, e ela é benéfica até certo ponto, pois exige a atenção que necessitamos para sobreviver – principalmente quando se é criança”, diz.
Mas se ao longo do crescimento psicossocial a pessoa não aprende a lidar com a necessidade de atenção de outra forma, ela não amadurece, conservando o narcisismo insistente dos tempos de criança. “Por isso, as diferenças incomodam alguns, porque não se amadureceu para entender que o outro também é um ser único e individual com suas dores, dificuldades e potências”, completa.
Muitas pessoas não têm condições de lidar com a avalanche de ódio (ou “hate”, como se diz nas redes) que a interação online pode trazer, criando o cenário para situações extremas como crises de depressão e até mesmo o suicídio – como se viu em caso recente da jovem Jéssica Canedo, que tirou a própria vida em dezembro, após ser alvo de uma campanha de ódio causada por fofoca mentirosa.
Autoconhecimento
Segundo a psicóloga, quando o “hate” atinge alguém que está em processo de autoconhecimento, o impacto pode ser menor e controlável, caso contrário, a pessoa se torna um alvo bem mais vulnerável. “A gente nunca sabe com qual estrutura psíquica está lidando, por isso é necessário o respeito, porque não sabemos a dor do outro, e nem a estrutura que o outro tem para lidar com essa dor. É preciso compreender que o outro é um ser único com as suas próprias necessidades”, afirma.
Vários casos de depressão podem de fato ter relação com situações ruins ligadas às redes sociais, mas isso varia de pessoa para pessoa, enfatiza Taciana. “Dependendo da estrutura da pessoa, fica mais difícil para ela lidar com essa realidade virtual, com o contexto que encontramos hoje em dia nas redes sociais. Mas não dá pra generalizar, pois isso estaria condicionado a uma série de fatores, como o psicológico da pessoa, seu tipo de depressão, etc.”, diz a psicóloga.
Perfil falso
A estudante de jornalismo Rayssa Vitorino resolveu dar um tempo nas interações virtuais após um incidente traumático ocorrido no ano passado. Ela havia começado a engajar um perfil de conteúdo fit no Instagram e Tik Tok. “Já no começo surgiram alguns comentários negativos, mas isso é de praxe nas redes e eu deixei passar sem muito barulho”, conta. No entanto, sem que ela soubesse, alguém criou um perfil fake, usando seu nome e foto, e oferecendo a venda de conteúdo adulto.
O perfil fake procurou vários seguidores de Rayssa para ser adicionado. Ela foi avisada por pessoas próximas e descobriu o golpe. “Eu fiquei chocada. Primeiro eu chorei muito. Depois fiquei com medo da minha família ver aquilo e realmente achar que era eu”, conta. A estudante de jornalismo então publicou um post sobre o caso no Instagram. Ela também tentou fazer uma denúncia online, sem resultado. No entanto, o próprio fake se desativou, três dias depois.
O susto foi breve, mas fez a jornalista encerrar a tentativa de ser influencer. “Na época eu fiquei muito mal. Tive medo disso interferir na minha vida profissional. Apesar do apoio da família e dos colegas de trabalho, eu perdi o ânimo e a vontade de postar nas redes”, diz.
Ela ainda mantém perfis no Instagram e X (Twitter), mas só para ver notícias e observar, não posta nada. Rayssa, por enquanto, não tem planos de engajar novamente em um perfil de rede social. “Isso já faz quase um ano, mas continuo com o receio de voltar a me expôr e acontecer tudo isso de novo”, conclui.
Tribuna do Norte