A alma lírica da Galícia seria a mesma de Portugal? Já vimos que na Idade Média o idioma era o mesmo, o galego-português ou galaico-português, entre nós também chamado de português arcaico. Um dos textos literários mais antigos – e que ultimamente vem-se confirmando como, de fato, o mais antigo preservado – é o sirventês (sátira ou cantiga de mal dizer) escrito pelo trovador português João Soares de Paiva (nascido em 1.140 d.C.), intitulado “Ora faz ost’o senhor de Navarra” (“Agora faz isto o senhor de Navarra”) e escrito, provavelmente, em 1.196 d.C. Nele, o poeta reprova o rei de Navarra por invadir Aragão, aproveitando-se da ausência do rei do país invadido (que se encontrava na Provença), atitude condenável sobretudo ante às regras morais da época.
Portugal e Galícia mantêm, ademais, um laço antigo, familiar, cultural e de sangue, que remonta à formação de seus povos e que advém dos Suevos, invasores germânicos de origem nórdica, que ali – no Noroeste da Península Ibérica, e com a desagregação do Império Romano do Ocidente – se estabeleceram, ao contrário dos Visigodos, originários do Oeste da Germânia, que fundaram seus reinos no Nordeste, Centro e Leste da mencionada Península, velha província romana da Hispânia.
Curioso e sobretudo importante destacar que na Galícia existe uma entidade cultural que preserva a tradição dessa irmandade linguística, e que abriga um movimento de reintegração do idioma à sua maneira autêntica/tradicional de expressar-se, isto é, reforça as posições pró-lusófonas, de unidade com a língua portuguesa. Trata-se da Academia Galega da Língua Portuguesa (https://www.academiagalega.gal/), constituída oficialmente em 20 de setembro em 2008. Embora nova, a Academia expressa uma aspiração de reintegração linguística antiga e consistente e já contabiliza uma importante vitória, com a decisão prolatada em 20 de julho de 2017, em reunião realizada no Brasil, em Brasília, pelo Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que lhe concede a categoria de Observador Consultivo, tornando-a, assim, a primeira entidade da sociedade civil galega a participar oficialmente desse organismo, e, acrescente-se, merecidamente, haja vista a sua defesa da unidade da língua portuguesa, da qual o galego historicamente faz parte.
A vitória, portanto, não é apenas da Academia, mas da própria língua que pulsa e quer ver-se oficialmente reintegrada ao seu leito secular originário, superando dificuldades, inclusive o obstáculo político que lhe foi imposto pela ditadura franquista durante algum tempo. Com efeito, nessa época, até os nomes próprios tinham que ser registrados em castelhano (espanhol), já que proibidos estavam os cartórios de acolhê-los em galego.
Conheço pessoalmente dois exemplos vivos de pessoas que atravessaram essa experiência de nomes oficialmente mutilados para espanhol. Morou durante algum tempo em Natal (agora, já em Portugal), contratado pela Fundação José Augusto, um escritor e dramaturgo galego chamado Monxo Rodrigues que, havendo nascido no período franquista, fora registrado como Ramón Rodriguez Guisande. Por sua vez, Juan Carlos Fuentes Moledo, escritor, contista, poeta, jornalista, que vive em Pontevedra, Galícia, tem dessa forma registrado o seu nome, mas, com orgulho, usa outro, o seu nome galego, Carlos Fontes, com o qual assina as cartas que me dirige, também no seu idioma materno.
Assim, a língua galega vive… e encanta! E eis, no original galego, o final de uma dessas cartas que me mandou o poeta Carlos Fontes, de expressão tão exemplar:
“E escribo en galego, a actualización histórica daquela lingua que, entre os séculos XII e XV, acadou gloria en forma de lírica mediaval galego-portuguesa. A lingua portuguesa seguiu o seu camiño, e a galega, baixo a forte influencia de Castela, iniciu unha longa viaxe polo deserto ata poderse refrescar na figura de Rosalía de Castro, que, a mediados do XIX, inicia o Rexurdimento.
Unha aperta grande e agarimosa,
Carlos Fontes.”