JOSEPH BOULIER: ENTRE FANTASIA, ARTE E DESASSOSSEGO
MACAU, OS BRUXOS E O CRIADOR DE MUNDOS
Tive a grata satisfação de conhecer Joseph Boulier no fim dos anos 80 e começo dos 90, quando eu presidia o bloco carnavalesco Os Bruxos e a Associação Macauense de Agremiações Carnavalescas. Ele fazia questão de ser chamado de Joseph, nome que, segundo ele, combinava com sua natureza inquieta e intuitiva. Era o nosso estilista, orientador e criador de mundos imaginários. Sob sua mão surgiam fantasias, adereços e os enfeites das carrocinhas que encantavam a avenida. Reuníamo-nos sempre com Tião Maia, Josias Herculano (in memoriam) e Francisco Inácio, o Tico. Era uma época em que Boulier transformava Os Bruxos num pequeno ministério da magia popular. Estavam também Renan Ribeiro, Zé Alfredo (in memoriam), Liduína Ribeiro (in memoriam), Sheila Bezerra, Levi Araújo e tantos outros que hoje habitam a memória afetiva e momesca de Macau.
UM ESTILISTA À FRENTE DO TEMPO
O jornalista macauense Antônio Degas recorda que Boulier chegou em Natal nos anos 70, trabalhando como figurinista das Casas Cardoso. Morou por longo período no Hotel Santanense, que se tornou seu refúgio criativo, lugar onde ideias surgiam como labaredas incessantes. “Estava muito à frente do seu tempo”, afirma Degas. Já o amigo Vicente Vitoriano lembra o artista como alguém de soluções rápidas e certeiras, capaz de resolver composições cromáticas com espontaneidade quase sobrenatural. Sua sensibilidade parecia operar em outro ritmo, guiada por um olhar de invenção permanente.
ENTRE CÂNONES, RUPTURAS E DISSONÂNCIAS
A leitura da Coleção de Arte, de Isaura Amélia, e os estudos do crítico Márcio Dantas ampliam os contornos desse artista que vivia em tensão com o mundo. José Boulier (Cavalcanti Sidou, 1951–2004), embora formado na Escola de Belas Artes de São Paulo, não se dedicou a questionar a representação nos moldes de Picasso, Modigliani ou Matisse. Seus retratos mais clássicos buscavam naturalismo singular, ainda que sem obedecer às proporções matemáticas tradicionais do olhar e das mãos. Essa decisão não revelava falha técnica, mas opção poética. Boulier buscava uma realidade própria, às vezes onírica, às vezes marcada por dissonâncias discretas. Seus personagens fantasiados, mesmo cercados por cenários festivos, carregavam melancolias contidas expressas em lágrimas solitárias que revelavam conflitos internos.


O DECORADOR DE FESTAS E O VIAJANTE INQUIETO
Além de pintor, Boulier foi decorador de festas, clubes e bailes. Tornou-se célebre em Mossoró pela decoração do baile da Norsal, quando transformou o salão com a temática do palhaço, preenchendo cada centímetro do espaço e afastando o horror ao vazio que parecia persegui-lo.
Também atuou como estilista em Teresina, Fortaleza e Recife, desenhando vestidos com rapidez, habilidade e certa teatralidade. Era um temperamento inquieto, quase saturnino. Mudava de residência com frequência, muitas vezes dentro da mesma cidade. Parecia perseguir algo inalcançável: talvez silêncio, talvez reencontro, talvez apenas o impulso dos que recusam a imobilidade.
PERFIS, CORES SIMBÓLICAS E MÁSCARAS
Uma marca constante de sua pintura era o uso de rostos de perfil, evocando a arte egípcia, porém sem seu caráter solene. Boulier parecia fascinado pelas máscaras humanas e pelas tensões entre autenticidade e dissimulação. Em uma de suas telas mais representativas, um rosto anguloso surge envolto por cores simbólicas: o amarelo do rosto confronta o marrom do pescoço, enquanto padrões vermelho-amarelos dialogam com o azul intenso que ocupa grande parte da composição.
O verde, mediador cromático, tenta harmonizar extremos que talvez nunca se encontrem.
ENTRE EROS, PSIQUÊ E O FIO DAS PARCAS
O olhar pintado por Boulier confessa impossibilidades e revela perguntas silenciosas. A arte, para ele, era fuga e enfrentamento. Em Mossoró, amigo de Marieta Lima, tornou-se figura incontornável. Suas visitas ao ateliê dela eram rituais de inquietude compartilhada. As horas, porém, cobraram seu preço. As Parcas, aliadas de Cronos, teceram com pressa o fio de sua vida. E Boulier, artista dos devaneios, consumiu-se como labareda viva, deixando às artes potiguares um rastro singular, irrepetível e profundamente humano.

