O juiz Cláudio Mendes Júnior, da 3ª Vara Criminal de Mossoró/RN, rejeitou denúncia por calúnia contra uma advogada que, a pedido da cliente, questionou suposto desaparecimento de dinheiro apreendido durante busca e apreensão policial. O ato chama a atenção porque, além de se basear em fundamentos processuais e no reconhecimento das prerrogativas da advocacia, faz crítica severa ao que o magistrado considera viés de gênero na acusação.
A decisão, proferida neste mês de julho no processo nº 0803488-32.2025.8.20.5106, é a primeira de que se tem notícia no Rio Grande do Norte, no âmbito criminal, a seguir a linha da Resolução 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A norma institui o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, abordagem que busca eliminar estereótipos e reduzir preconceitos.
Para o magistrado, o machismo estrutural foi o motor da persecução penal, iniciada com o indiciamento por calúnia contra funcionário público em razão de suas funções (arts. 138 e 141, II, do Código Penal). Nas palavras do juiz: “Constata-se, de forma reiterada, a menção de que a advogada denunciada ‘precisava ficar calma’ ou que se encontrava ‘muito exaltada’ durante os acontecimentos investigados”.
Essas expressões, diz Mendes, “reproduzem um imaginário social estruturalmente marcado por padrões sexistas”. E prossegue: “ao longo da história, associaram a manifestação firme ou enérgica de mulheres à histeria, descontrole ou desequilíbrio emocional, o que não raro se desdobra em deslegitimação de suas falas e ações, especialmente em ambientes institucionalmente marcados por forte presença masculina e por hierarquias rígidas”.
Segundo o julgador, a lógica interpretativa que levou ao indiciamento e à denúncia “reforça aquilo que a doutrina feminista e os estudos críticos do direito vêm denunciando há décadas: a aplicação seletiva do juízo de censura em relação a comportamentos que, quando praticados por homens, são vistos como assertivos, e, quando manifestados por mulheres, são considerados desproporcionais ou inadequados”.
O magistrado, que é professor de direito e autor de livros jurídicos, critica também o que classifica de “imposição implícita de um ‘lugar de fala e de postura’ à advogada, enquanto mulher e profissional. Isso, conforme a decisão, “encontra-se no cerne de práticas sociais discriminatórias que o ordenamento jurídico constitucional, notadamente à luz do art. 5º, inciso I, da Constituição Federal, repudia expressamente”.
Em manifestação nos autos do processo, o Ministério Público (MP) disse acatar, com ressalvas, a rejeição da denúncia. O promotor que assina a petição se diz surpreso com o argumento judicial, “por transcender a objetividade e a técnica características peculiares” à 3ª Vara Criminal. Além disso, registra que a sua atuação “nunca teve, nem nunca terá, o condão misógino e no caso concreto não é diferente, a oferta da denúncia pautou-se exclusivamente nas provas e no arcabouço normativo”.
Atuaram pela defesa, os advogados Clarisse Cristina Aquino Tavares e Cid Augusto, designados para esse fim pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Também participaram membros das comissões de prerrogativas de Mossoró e Natal.
Em suas redes sociais, Clarisse Tavares, que é presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB de Mossoró, destacou a importância da decisão. De acordo com ela, a sentença é importante, especialmente por dois aspectos: “o da valorização das prerrogativas da advocacia e o do combate ao machismo estrutural que ainda atrapalha a atuação jurídica feminina, incluindo não apenas as advogadas, mas também promotoras e juízas”.