Ontem, 4 de julho, foi o aniversário de meu irmão Daltro. Estaria, agora em 2025, completando 88 anos de idade, mas, infelizmente, deixou-nos cedo, muito cedo, aos 58 anos, em 29 de maio de 1996. Em julho desse mesmo ano faria 59. Eu gostava muito dele e sinto imensamente a sua falta.
Culto, apaixonado por poesia, nove anos mais velho de que eu, incentivava-me a escrever. Foi quem me apresentou Fernando Pessoa, autor número 1 da coleção de poesia Nossos Clássicos, da Editora Agir. E isto na década de 1950, quando poucos o conheciam aqui. Certa vez, eu já adulto, casado, bancário e advogado, levei-lhe um de meus poemas, “Grilo na Noite”. Ele o leu, vagarosamente e com atenção, elogiou-o e, depois de algum tempo, me lançou um desafio inusitado: “Horácio, deixe tudo de lado e se dedique apenas a escrever!” Ele tinha essas tiradas, algumas geniais: “Faça o impossível, porque o possível qualquer um faz!”, frase que depois usei como mote de meu poema “Não deixes o tempo passar”.
Ontem (que coincidência!) também jogaram dois times brasileiros de sua predileção, o Fluminense, pelo qual sempre torceu, e o Palmeiras. Homenageei o torcedor, no seu aniversário, assistindo o Fluminense jogar e também torcendo por ele.
Hoje, presto-lhe nova homenagem, reproduzindo nesta página um de seus belos poemas, “Fome”.
Sim, Daltro, que foi juiz de direito, também era escritor. Além de textos publicados no jornal “O Nacionalista”, de Macau – onde, ainda jovem, mantinha uma irônica coluna intitulada “Dicionário Interessantíssimo” (fazendo valer sua veia satírica, criticando políticos e costumes), deixou-nos alguns poemas e minicontos. Mas, estes, todos inéditos. Num desses minicontos, intitulado “52º andar”, de elogiável criatividade e notadamente surrealista, dedicado ao escritor Francisco Sobreira e escrito entre 13 e 26 de fevereiro de 1977, eu e Sobreira somos seus personagens.
Mas vamos ao poema “Fome”, de palpitante cunho social, escrito em Maceió, onde cursava Direito, em 15 de novembro de 1964:
FOME
Ela estava com fome.
Mostrou-lhe o estômago.
E ele nada fez.
Disse-lhe apenas
Que não se podia comer
De graça. Ela concordou.
E a noite se tornou insuportável…
Ela desceu a escada leve
Pois o salão ia abrir, e ela
Precisava comer…
Tinha ido ao cabelereiro,
Fizera as unhas, estava bonita
Esperando…
As noites às vezes eram compreensíveis,
Sempre vazias…
Há pouco uma sua companheira,
Que estivera lânguida e desfigurada
Pela fome, havia sido expulsa
De lá. Perguntou-lhe ele:
Por que esse cabelo? E as unhas,
Não tem estojo? – É caro…
Apesar de todas as promessas,
Ele deu voltas pela cidade,
Andou muito, até cansar,
Mas resolveu não as cumprir.
Não mais voltou a vê-la.
No entanto, continua nele
A sua fome, que ele sente
Crescer dolorosamente
E subir-lhe ao peito
Oprimindo-o.
(Daltro de Paiva Oliveira)
A ele dediquei, embora à época já falecido, o meu primeiro livro de poemas, publicado em 2002, “Navio entre espadas”.
Era uma figura extraordinária. Em seu último ano de vida, fez-me uma confissão: indagava-se sobre que mérito havia Deus visto nele, para conceder-lhe aquela graça de avisar-lhe que ainda teria mais um ano de vida – pouco, mas suficiente para fazer suas reflexões, avaliar sua vida, seus acertos e seus erros, e destes, enfim, arrepender-se. Qual teria sido o seu mérito, indagava, que havia motivado Deus a tanto?… E concluía: talvez pelo fato de haver procurado ser justo enquanto exerceu a autoridade de juiz, julgando o pobre e o rico sob o pálio da igualdade, sem distinção de classe social.